o aroma de

quando abrimos os olhos

tem a dimensão única

da manhã original.

um hábito exausto de

como existisse um sangue apoucado,

diário,

exposto a fervilhadas perdas.

e fosse possível dar ao corpo

o incêndio do esquecimento

por entre o calor das viagens

e das coisas breves

ímpias e hermeticamente

fechadas

que aguardam a luz de

suposto dia

pretérito

 

 

perdida a flor

de olhar crivado

pelo meio da página.

a princípio

e pela cor das folhas

deixamos de ouvir.

resta-nos o ombro sentado

e a surdez mergulhada no

gelo.

 

gestos e metades

que consubstanciam a constante do silêncio.

o ruído do fim

e os retratos murmurados

deambulam sempre.

há uma cadeira inerte.

a princípio

é o turno na fábrica,

a aflição secular da tinta seca

a secar.

 

diante dos dedos

crepita o insalubre fastio.

o ombro levanta-se

e o gelo, a quebrantar,

dialoga longamente,

a surdir.

 

as pálpebras fixam

novo horizonte.

destapa-se das folhas

e enfim respira

 

redescobre cá fora

o seu íntimo rumor.

periclitante, inclina-se

sobre pequenos passos,

abre os braços

e apazigua o êxtase,

num corpóreo instante

e daí em diante.

 

 

arrefeceu o instante

num dos quartos.

o sorriso escorrido,

pela face, permitia

vislumbre da memória do excesso.

o frio e tremor desencadeados pelo

precipício do oráculo,

tão desnecessários,

introduzidos metodicamente

em função do incomensurável

silêncio,

pendurado num cabide tóxico

e abandonado, faziam antever

uma agenda cheia:

dia de feridas.

 

exangues progridem

semoventes,

a carecer de vontade,

num pretérito

sossegado, mas

de dimensão

apressada, e

 

 

saqueadas que estão

as memórias


ficam no corpo, além dos mapas
coordenadas íntimas

lugares plenos sem bússola

onde repousem.

 

fronteiras brancas

brevemente invadidas
por destinos

de inquietude

 

movimentos migratórios
a fruir das estações.
com delicadeza

pormenor e incerta argúcia,

junto à 

 

pele.

sempre a pele

onde elementos de uma paisagem

extinta a palmo

é miradouro comovedor

de lágrimas

e estas

prolongadas pelo riso.

 

 

as cortinas fechadas

surgem a periclitar

o norte das memórias.

 

destapado o silêncio,

eis o refúgio improvável

daquele inverno perdido.

 

a pairar em vislumbre

na vertigem da filigrana de fronteira

entre uma e outra página

 

em que vento e o tempo distante

eram súbita vertigem à jugular.

 

e se havia contentamento

todo fora ali consumido.

 

- e havia. Explícito.

 

amarelecendo no vagar

do sorriso que ali, sem mais

amanhece.

 

são silentes destinos

revigorados, monólogos

adentrados:

 

coube-me um mar retórico

nas marés

partiremos, rarefeitos

por quadrante

longitudes consumadas

de entre continentes da pele

em último portulano

conhecido.

a bolinar àquilo que é vasto

sem tréguas aos ecos das falésias

inconstantes

nem à dissonância dos náufragos.

mínimo farol

do abatimento estrelado

na moeda da ausência

trocada por regresso.

rumo ao silêncio,

 

explosão, ei-la a descoberto

porquanto escrevia à mão

os cantos inabitados da cidade

enquanto de branco

o cabelo se tingia

 

por vezes

por causa de uma cicatriz antiga

mostrava as rugas nas

entrelinhas

 

e limpava-lhe o pó

se ninguém estivesse a ver

 

umas vezes por dentro

outras não

 

como tem de ser

para juntar ao silêncio

do correio

 

o enternecimento

de como as palavras chegavam,

partiam.

e assim habitavam

entre uma mão e outra -

o coração.

 

ao pé deles

eles são, enfim, o rubro

caminho que ao porto

do outro vem a desenhar-se.

no chão embranquecido

da mesma página

medrando pelos tempos.

 

pedaços do mesmo barro

e pegadas do mesmo mundo

do mesmo caos

da mesma tormenta,

a carminar num novelo.

 

a chegada essa foi como se não

houvera a partida

um dia, ao longe aguardado

o penúltimo fôlego desde sempre

rumo à mesma boca,

pontualmente.

 

assevera-se que

se trata de um único

e repetido

tesouro.

seguro em segredo,

 

por mãos repetidas

em doce carrossel

da seiva.

 

canto de uma

aurora embevecida

incluso no coração.

 

extática, a sombra,

segura o vento tecido

 

na voz da

vertigem,

 

na fuligem do destino.

 

o improvável grito ancestral

observa-o

 

no travesso

e aturdido existir

silente

 

 

tece

o último decúbito

 

com a simples

ferocidade

 

de fechar os olhos,

teimosamente escuros,

 

à rampa da memória.

 

a um passo onírico

do traço

a que o fado desembrulha

e devolve

com a vida abotoada às costas

seu merecido descanso

 

a queda

pernoita por entre

a memória
com a coloração do mundo.

há um abraço perdido

na escolha do tom

exacto.

 

o instante

quando bebe da corda

marca - indelével

o pescoço náufrago.

 

o local

frágil da noite

segue apressado

como quem quer chegar

- os bolsos vazios

violentado

pelo pó

 

retido

na obscuridade.

assiste-se à mudança

das estações,

sempre resistindo.

planando por cima

das luzes.

 

a rotação

dos hemisférios

vem com a idade.

 

e uma ruga

engoliu outra vida.

 

vão a par,

pé ante pé.

 

o bramido

do guincho

reverbera o desabrochar

do sono.

é a brisa inquieta,

a chave

de todo despertar.

 

à estação caem-lhe

folhas.

as uvas

que dão o vinho

permanecem

vestidas de colegiais

na vibração

do tempo que

fermentado o mosto,

lhes pôs

pés.

 

num percalço

juvenil,

abre-se no sorriso

um calor

preliminar entre

o corpo A

e o corpo B,

subjaz.

instantes depois

crescem para o

outro,

e em direcção

à roupa. E à porta

fora.

o solitário deles

tem o aroma original

do espírito livre

e da inquietude branca.

habitam nas

horas da perda,

são memórias à tona

e na volta líquida da espuma.

Mas,

profusamente

- dentro das palavras.


nuno travanca


 

se te dói

como a mim dói

dói aos dóis,

aos dois,

ou só a mim, dói-dói?


nuno travanca



as uvas
que dão o vinho
permanecem
vestidas de colegiais
na vibração
do tempo que
fermentado o mosto
lhes pôs
pés


nuno travanca

ela solve mecanicamente o sangue

quando inspira melancólico outro dia

uma pequena árvore mostra-me as asas
os voos impróprios que lhe descobre
as luzes ofuscadas do seu límpido sono

e então expira, tal prazo que não li
processa-se ante um corpete apertado
uma respiração dúbia

obstinadamente reflectiram o silêncio
os passeios dos lagos espelhados
a raiva dos campos de batalha

e é esta causa justa que lhe vejo
entre a penumbra

músculos da boca tendem a sorrir
a não sorrir

é inconsolável esta cura que
com as rédeas bem presas
deixa de processar um esteta

beleza enquanto processo respiratório
Zulu das Meias Altas

de todas a mais volátil
é a categoria tempo

fernando assis pacheco
memórias do contencioso


 

Estou cego. Horas sem sombra, assobios de pastores, balidos, deve ser o meio dia dos mortos. Mas, apesar de tudo, se o corpo queimado arredasse todos os animais estelares - esse pano cerzido com fios de luz, onde avisto o estremecimento da gazela em teu peito - fingiria a morte.

Penso em ti. Bebo. Fumo, mantenho-me atento, absorto - aqui sentado, junto à janela fechada.

Recolho o mel, guardo a alegria, e digo-te baixinho: apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge.

Al Berto
Lunário
São Pedro de Moel

o silêncio desta terra
é inútil e resiste
nas viagens do meu menino
na pupila brilhante e demorada
atenta à raiz de uma lenta origem
que aguarda pela mudança da estação

o silêncio desta terra
é um obscuro e rigoroso exercício
daquele que sonha ainda a profecia
surge à flor da pele por acreditar
a casa inabitada desse ficcionado futuro
enquanto decora a sala de estar

o silêncio desta terra
é feita de homens que de tanto se conhece
os primitivos instintos e alguns conflitos
que impenetráveis acendem o mundo
na arte do desencontro

o silêncio desta terra
coincide com um tempo desacordado
de esquinas dispostas e encerradas em si
com a proibição das escadas
e a memória da impossibilidade

o silêncio desta terra
é sustentado por um vulgar vazio
de olhos escuros e já pouca saliva
cuida da separação dos ossos
e do sentido compreendido do branco

o silêncio desta terra
é translúcido e existe, cumpre-se
em delongadas conversas inócuas
traz com ele a perda e as faltas
sinistras e frágeis emoções

o silêncio desta terra
será cortado em todos os vértices
que na imensidão das vestes
ligam as vozes de semi-acordados esqueletos
e dessa maravilhosa discórdia do silêncio

rejubilem ó senhoriais do mundo
que o vosso silêncio terá um fim célere
porque na posse do seu verdadeiro íntimo
o homem há-de acordar e vós
um a um cairão por terra, em estrondo


o silêncio desta terra
nuno travanca

os navios esperam a ordem do vento para outra dança

tombam seus tripulantes de pé verticalmente distraídos a digerir vapor e algas o fio da loucura fá-los tropeçar nas ondas os navios sabem afundar os navios afundarão os seus marinheiros os marinheiros não sabendo, agarram-se e dá pena como lutam os marinheiros dormem no convés em teias lácteas de queda livre as aves que bebem o sal trazem o marítimo medo de não voltar a terra ao bojo do barco, o alimento fresco ao baixo ventre dos homens, o calor aos mastros os navios não afundam na areia e talvez por essa razão não se encontre a caixa negra desse amor tão naufragado Ana S.

Estamos do lado errado. Outra vez.

Fomos esquecendo as senhas
que nos abriam a solidão e o espanto.
Crescemos baços, cansados, estrelas
frias mas longe da onda que virá
lavar o sangue do sacrifício.
E mais facilmente cruzávamos
espelhos, muros, desamores
do que atravessávamos esta rua
ou restaurávamos agora
a independência das nossas almas.

Talvez se consiga ainda exumar,
na nossa arqueologia de sobrevivência,
uma dessas palavras latentes
para oferecer a um poeta - 
apenas significante, já tão pouca flor.
Esperaríamos depois,
ao redor da cama de um de nós,
que esse gesto perturbasse destinos,
acordasse motins serenos, fosse o grão
de pólen no mecanismo sensível do mundo.

Os conjurados
Inês Dias

Nao sei ha quanto tempo escureceu...
Adormeci... Eu ando tão cansada!...
Resava quando o sono me venceu - 
Meu Deus!... Já vem rompendo a madrugada!

Que estranha somnolencia que me deu!...
Olho atravez dos vidros - a geada,
parece o mostruario dum hebreu... - 
refulgem pedrarias na ramada!

O Sol, fonte doirada e faiscante
incendiou os vidros da janela
e irradia na relva verdejante...

- Mas a luz da minha alma não voltou...
Perdia, e nunca mais eu soube dela
desde o dia em que a tua m'a levou!

Judith Teixeira
Inverno-Amanhecer

Subi a escadaria azul até ao céu

subi até onde desabrochavam as rosas

até onde falavam as rosas


não ouvi nada nada que se ouvisse

ouvi o silêncio


subi até onde cantavam as rosas

até onde aguardavam os deuses

escadaria azul lá no alto do céu


mas não ouvi nada nada que se ouvisse

ouvi o silêncio o silêncio


Vasco Gato

O aroma de
quando abrimos os olhos
tem a dimensão única
da manhã original
um hábito exausto de
como existisse um sangue apoucado
diário
exposto a fervilhadas perdas
e fosse possível dar ao corpo
o incêndio do esquecimento
por entre o calor das viagens
e das coisas breves
ímpias e hermeticamente
fechadas
que aguardam a luz de
suposto dia
pretérito

nuno travanca



Apesar da morte pesar,
as trepadeiras insistem
num serpentear sobre
os muros, as tardes
estão menos alcalinas,
e o tanque onde em
crianças nos banhávamos segue o
seu percurso só, de
musgos e ausências de
corpos humanos.
Sabes, as figueiras
estarão repletas de
figos por alturas do
estio e as flores
multiplicam-se numa
explosão de fragrâncias
e cores. Os dedos vão
insistindo nisto das
sílabas e ocorre-me
como pode a vastidão
do mar conter-se numa
única sílaba. Escrevo-te,
mesmo sabendo que
não lerás estas linhas.
Deixei o portão velho e
repleto de ferrugem,
aberto, para um
qualquer vento que o
enlace. Os jarros estão
frondosos e no outro
dia fiz mousse de lima,
que tanto apreciavas.
Os gatos são agora
uma multidão pacífica
dormindo aqui e acolá.
Os versos
do Gamoneda são
intensos focos
luminosos de
escuridão. Majestosos
e ímpares. Vou
deixando pequenas
ausências aqui e ali. Tu,
sabes como verter da
água o sal, sabes os
meus mais recônditos
gestos. O sol é então a
união entre o sacro e
profano. A sombra
conhece o caminho do
meu corpo, até o
abandonar por inteiro.
Fui ao poço retirar
água e voltei com os
olhos repletos de
lágrimas. Amanhã
talvez não chova e
possamos assistir com
maior impacto à
multiplicação das
giestas. Por ora tudo
me sabe a urze
e palavras desconexas,
como estas que te
dedico.
 
Leonora Rosado
 


 

 

[chuva]

quando nos olhamos
e nos tocamos
nossos corpos se transformam
assim o pulsar das águas
somente um nome

José Manuel Barroso

 


Sabias que as mulheres voam

pelo declínio da febre?

o meu peixe apoia as ideias nas veias

o crepúsculo é a fenda do mar


os pássaros não sobrevoam

voam enquanto as pedras se babam


seguiremos até amanhã o seu rasto

quando


a lua ontem à tardinha

desceu ao telhado

os dois analisámos as imagens:

em geral as pessoas vão passando e sorriem

e perguntam o que é isso que arde

quando se ama mesmo em ferida


trazer o mundo às costas

é apenas uma aparência


m. parissy


 


Que de par em par
recebe a noite
e se precipita
num prado de janelas
num campo verde, aquoso
à bolina
sem um rumo tido. Mas
além navegando
por entre o olhar do fado
e a memória dos sóis.

nuno travanca

 

de perfil vêem-se

sombras amistosas

 

com as mãos abertas

seduzidas por um olhar

de distância

 

durante muito tempo

repletos de ouro

e de feridas em flocos de neve

aprenderão na água

os pequenos trilhos por

desaguar

 

ano, após ano

 

 

encontram-se no dilate

das pupilas

e pátios extensos,

inclinados ao vinho

- sentado

na claridade do coração.

 

alguém entra

pelo esquecimento adentro

 

a pulsar o sangue

como peixe num ribeiro

em torpes correrias

 

canta-se, bem alto:

 

Rusgas, na

taberna da memória.

 

ano, após ano

 

nuno travanca


 

 

[o outro lado]

as mãos emprestam acordes
não mais.
o mais é mais
o deus de olhos abertos
que escuta um salmo
através da janela iluminada.
o piano apenas reflete
o gesto das mãos
o outro lado
da musica anunciada.

José Manuel Barroso

 

A água


A água tem a vida a rebanho. A água tem a morte a chocalhos. Tudo com água e à
beira da água. Água a lavar os pés, a lavar o desespero, a enxaguar as placentas e as mortalhas. 

Água-ardente, água benta, água de rosas, água-pé, aguarela, água oxigenada, água-furtada, aguarrás e aguadilha de videira brava. Água do mar que engole a água dos rios e dos lagos e afoga os peixes-carmesim. Água suja que se atira pelas janelas digitais. Água por causa da água com gás, gengibre, canela e limão. Água em Marte e em jejum. Água e sal. Água e fogo. Água faz mal. Água faz bem. Água faz engordar. Água faz emagrecer. Água quente faz cair o cabelo. Água inglesa faz aumentar o leite. Água fresca para os búfalos. Água para ferros de engomar. Água mais cara do mundo. Água menos densa. Água mais ácida. Água a dar com um pau. Regadores com água para regar avencas. Embrulhos de água mole em pedra dura para os meses de casar com o melhor amigo. Aguadeiros em greve de sede no deserto do Namibe cantando Águas de Março. Repuxos e fontanários. Poços e ribeiros soltos. Garrafões com e sem rótulo. Nascentes liberalizadas. Copos de água para baptizados. E muitos banhos de benzoato de benzilo para sarnentos e acompanhantes.



Alice Caetano


Na linha rubra do horizonte, a serra.

Como um monstro gigante, adormecido,
tem o ar repousado e indefinido
de quem dorme há mil anos sobre a terra!

O arvoredo, os braços nus descerra
para o azul, já frio e diluído - 
curvado o tronco negro e carcomido
rezando pelo Sol que se desterra...

Ao longe os corvos, velhos e palreiros,
lá andam a cantar pelos outeiros.
Feitiços de gigantes encantados!...

E o vento desvairado em seu fragor
vai pelos montes, repetindo a dor,
dos que andam pela vida, desgarrados!

Judith Teixeira
quando o Sol morre

 

Ouço o teu pranto.


Subo aos quartos onde a sombra pesa nas madeixas

imóveis, mas tu não estás: estão apenas os lençóis que

envolveram os teus sonhos.


Tudo em mim é já desaparição?

Ainda não. Para além do silêncio,

ouço de novo o teu pranto.


Que estranha se pôs a existência:

tu sorris no passado

e eu sei que vivo porque te ouço chorar.


Antonio Gamoneda



 


O meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.

Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente

no suicidas; está a criar a velhice:

Ontem e hoje são já o mesmo dia no meu coração.


Antonio Gamoneda


 

Inscrição táctil


Beijar o chão -

O mundo existe (.)

- Antes de vir a noite,

encontrar um espelho.


J.O. Travanca-Rêgo



 


Os cobardes


La belleza no es un lugar donde van a parar los cobardes.

                                                        Antonio Gamoneda


Talvez venhas a morrer perto

violentado pela luz, pelo assombro

de uma vida pensada junto ao fogo

mas de onde nunca trouxeste nada


A vida é tanto mais pesada

se te não fere a violência de um deus

se regressas da solidão com o mesmo porte

com as mãos abertas e laceradas


como praças descobertas para a morte


Bruno M. Silva




 [despertar]

a sua bicicleta
rompe a bruma
seu chapéu de sol aberto
e seus olhos verdes
entre as paredes das nuvens
espera-a um leito
de fulvos gerânios
onde ela se deita
vagarosamente
seus longos cabelos
pendendo
para as águas da manhã

José Manuel Barroso


 

Copos de sede

 

Se duvidas da tua sede, se não te atreves

a perguntar-lhe ou a dar-lhe um nome,

se só sabes que procuras uma água

que a sacie e não encontras senão poços,

e neles ecos que te chamam, bebe.

 

Se a sede ao beber desaparece

é porque era só sede. Continua a procurar.

 

Mas se cresce em ti quando a sacias,

se queres não deixar de ter sede

e sim continuar a beber dia e noite

copos de sede, não duvides:

podes chamar-lhe amor, continuar sofrendo,

e saber que não existe quem te guie.

 

Juan Vicente Piqueras


 


Lava uma mulher

O rosto numa bacia de zinco

Aqui nada se move

Excepto as suas mãos sobre a água

Sobre a face e o sabão

Aqui qualquer palavra é um intruso

Tal o acto íntimo que soergue

A mulher arranca o grito a um pássaro cativo

E a subtileza deste quadro numa tela profunda

Espera o enxaguar

 

Leonora Rosado


o monstro da segunda circular

esgueirou-se pelas falhas da fita cola. encheu as órbitas de autocolantes, dois planetas sem espessura. fez a sua pele que lhe amarfanhava os gestos. pôs o seu melhor sorriso e desafiou os seres parados. amanhã, quem sabe, viajará num forro rasgado, num estofo coçado, num sonho estafado. procura-se músculo invisível, monstro que se entranha entre o osso e a pele.

Sónia Oliveira


 

Olvidamos el terror de la ausencia


Cuando te mueras serás immortal.

Habitarás en los nidos 

de los pájaros y del campo aprenderás

la respiración del agua y la humedad 

sencilla de las hojas verdes. 

Cuerpo feliz. 

Tendrá que haber algo autêntico. 

Aspiras a la imposibilidad. 

Fresco sonido de sombra. 

En la carretera dejarán un cesto con menta 

y el aire se inundará de olores tiernos. 

El mundo tiembla. 

Llega la noche.

Amanece, sin novedad, sin ti.


Javier Hernando Herráez


Esquecemos a aflição da ausência

 

Quando a morte vier serás imortal.

Habitarás os ninhos

dos pássaros e no campo serás encontrada

na respiração da água e nas folhas, simples

verdes e húmidas.

Cenário idílico.

Terá certamente de ser algo genuíno.

Porque aspiras à impossibilidade.

Ao fresco tom da sombra.

Na estrada estará um cesto de hortelã

e o ar será inundado por odores ternos.

O mundo estremece.

Chega a noite.

E amanhece sem surpresa, a ausência.


Javier Hernando Herráez (tradução livre)